10:31, julho (depois de algo)


Jafar, 

de onde estou recolho fragmentos de impressões que possam chegar até aí como alívio. de onde estou tento capturar alguns movimentos para tentar dizer-te. lembro de ti quando vejo rostos nos muros, desapercebidos. pintaram toda a cidade, mas tenho a impressão de que as pessoas se perderam nos metrôs ou nos edifícios e não olham pra fora. ontem eu passei a tarde em um lugar que não sei onde fica ou que rosto tem, não sei se é um prédio antigo ou moderno, só sei que dentro dele as pessoas atravessam andares apressadas, não há luz solar, só há marcas e objetos a venda. é muita gente, e ao mesmo tempo nenhuma. no interior e no sol quente essas coisas nos parecem oníricas, o cinza e a falta de céu, a impessoalidade. 
enquanto esperava o metrô, voltando de lá, percebi que nas paredes do outro lado dos trilhos haviam letras simples, preto no branco do azulejo, e comecei a ler: quando eu nasci, as frases que hão de salvar a humanidade já estavam todas escritas. só faltava uma coisa: salvar a humanidade, estava lá. ninguém lia. ao lado dela, mais frases. um rapaz de uma magreza engraçada dançava despistadamente com o chapéu, achando que ninguém o via, escutava música em fones de ouvido e começara a expandir os movimentos. tem espaços só nossos mesmo quando não estamos em casa. casa talvez seja dentro da gente mesmo. será? me levantei e olhei a parede atrás de mim: belo não é o gosto pessoal. é todos os gostos pessoais. busquei na bolsa um caderno ou bloco que pudesse anotar todas as frases, vi uma outra sobre o homem comum, uma outra sobre a pintura e assim foi - enquanto o barulho do metrô vinha chegando. consegui anotar apressadamente uma delas, enquanto entrava no vagão: uma época não é apenas uma questão de tempo, mas essencialmente um sentido do novo no eterno.
comecei a movimentar-me, sem sol. 

de onde estou eu tento reter alguns rostos, alguns gestos. é gente demais, é detalhe demais. talvez seja por isso que as pessoas não olhem. em algum momento percebi que talvez não me dê conta se vi um rosto duas vezes, mesmo que o vejo todos os dias. sabe quando você conhece alguém só pelo fato de vê-la todos os dias no mesmo lugar e tempo? ou de formas avulsas em diversos lugares seus? e de alguma forma vocês começam a dizer oi um pro outro? isso parece não acontecer aqui. são rostos demais. será? 
lembro de uma mulher que observei por duas vezes, dela eu me lembro - estava sempre sentada no canto, numa elegância que me assombrava, uma figura nítida, de cabelos presos em desalinho, roupas simétricas, escondida talvez pela cor comum do castanho do cabelo e roupa, seus óculos sobre um livro no colo, reparei: depois de um tempo percebi que se movia como num ninar.
capturei-a. 
tentei capturar também um rapaz no meio da multidão num concerto, que olhou pra trás perto de onde eu estava, no alto de uma escadaria, e sorriu, piscou os olhos e levantou a mão num aceno. olhei pro lado, uma moça rindo para ele de volta, se reconheceram. achei bonito. 
na mesma multidão vi pessoas colocando flores nos cabelos, cabelos de todo jeito, nenhum se fingindo de outra coisa. eles se davam as flores sorrindo. sorrisos e flores acabam por sempre entrar nesses movimentos e rostos que eu quero reter. junto deles, uma moça de cabelos cacheados longos, de rosto fino e um ar distante. fiquei olhando enquanto ela dançava de olhos fechados, encostada numa parede, era alheia e não impassível. 
lembro dos rapazes atrás de mim, um deles gritava imenso e não se segurava de entusiasmo (na medida do possível), em algum momento gritou muito perto de mim, olhei para trás assustada, ele me viu e pediu desculpas dizendo: é que os amo muito. sorri, não tem problema amar não. falei que gritasse outra vez, pedisse mais duas músicas, não uma. a banda, que já se preparava pra sair do palco, voltou dizendo que só tocaria mais duas. espero que ele continue amando e gritando. 

de onde estou caminho sozinha e penso tanto quanto sonho. no caminho de casa venho escutando o barulho do trem que começa a diluir-se e ritmar meus pensamentos, eu vou de acordo com o som do trem. o mar projetado nas janelas, eu começo a pensar que flutuo. do outro lado, a paisagem passa muito perto e muito rápido, um vulto que dói quando se olha. por vezes o mar desaparece e eu só vejo o céu, em outras viagens ele permanece lá reto e constante. tudo depende do lugar que escolho para observar. lembro da llansol, lembro de escutar sobre sua preferência por seres múltiplos num único ser, lembro da intensidade do instante, de passar da angústia ao fulgor, da metanoite. e sinto saudade e dor, fora do texto tudo isso é demais. um dia quero que leia llansol, sei que vai lhe doer. e sei que você não vai pensar enquanto vive a leitura, sei que somente vai sentí-la. sei disso. quando isso acontecer, você vai entender dos afectos que lhe falei muito mais, e vai sentir-se em expansão. estarei aqui para o colapso. 

de onde eu estou passei a conhecer mais o vento. aqui ele tem voz, ele grita o dia inteiro no apartamento. e quando saio ele me carrega rua afora. o vento aqui é forte, é frio. demorou muito para que ele aceitasse os meus vestidos, ou eu o compreendesse. no interior não venta muito. 
quando caminhava no fim da tarde, havia um ponto da minha rua favorita que sempre ventava. eu lá punha os pés e o vento chegava. sempre achava isso extraordinário. era pouco vento, mas havia. 
aqui, quando desci do trem e me pus no caminho de casa, veio ele me acompanhar. 
acontece que é bom sentí-lo no rosto, é bom tê-lo. 
meu óculos começou a sair do rosto e ajeitei-o no lugar, acabei por sujar a lente. procurei nos bolsos da calça algo que pudesse usar, lembrei de um lenço específico que não via a algum tempo. percebi que era bom que não o encontrasse, sempre tinha para mim que era a materialização de uma lembrança. 
depois de lembrar do lenço e pensar em não achá-lo, o encontrei. no bolso do colete. limpei meu óculos e fiquei ali, segurando-o com toda a força. veio a minha mente a imagem da escadaria em ruínas que encontrei em sintra, quando perdida. de alguma forma me chegou como um artefato, como uma dor. no drama-poesia estamos num ponto em que não se pode voltar, já se está em movimento. e eu estava. eu caminhava entre as árvores que criam o caminho até a minha torre, e segurava o lenço para que o vento tentasse levá-lo de mim. eu queria ver aquilo voando, e ao mesmo tempo não soltar de forma alguma. compreendi o quanto aquilo havia se transformado em símbolo, e quando o segurei firme percebi mais dor. não adianta, querido, parece que eu estou cercada dessa memória que não quero mais.  com o lenço eu lembrei de tanto afecto. eu lembrei mais. 
tomei o caminho mais longo e vazio para a casa, ninguém iria me ver, ninguém iria se importar se me visse, e eu não me importava também. o vento ajuda, e eu comecei a dançar. estou tentando me expandir um pouco, estou tentando permanecer só. enquanto eu danço, alivia. 
de onde eu estou percebo o quanto faz falta. 
de onde eu estou quero que você tenha alívio. 
quero que continue sentindo, e perceba as variações de intensidade nos espaços, nos movimentos.
de onde eu estou te envio algo de mim, 
me escreva. 

Elisa