Real


1.

Agora tudo volteia na memória, insistente, numa vivacidade incômoda.
"Ele vem?"
Cada descrição de um turbilhão de pensamentos lhe parecia inverídica.
Atordoada, tudo entrara um silêncio. Tudo parou, ele ainda não estava diante de seus olhos.
O silêncio era palpável, duro e seco, intimidador: queria dizer-lhe que o agora era eterno, que por mais que tentasse fazer desses momentos antes de vê-lo comuns, não o eram.
O imediatamente antes marca, é o quase. O quase, o não-concreto, o incompleto...
Será difícil vê-lo no amontoado de cabeças e vultos... Seria como a cena consolidada de um encontro?Imaginou durante dias, pensava simulando não pensar.
Agora aterrorizava-se. Não o acharia, não o encontraria, não o veria, é gente demais...
Na multidão, captou o movimento, o movimento de quem a percebera aproximar-se, e
O viu.

2.


Corre. Ainda que frenético, consegue pensar em todos os adornos que a rodeiam. Corre, não conseguirá, corre. Toda a luminosidade projetava sombras no solo, sombras de árvores que limitavam a praça. Sombras estas que quase criavam um cenário propício, correndo.
De tudo, tem consciência da luz, do verde e marrom: o chão, as folhas, os troncos, a falta de. E se move. No cenário, ela desaparece, Agora a consciência é só do fim da corrida, das cores, das coisas, não dela. Ela é somente esse recorte de consciência que se projeta ao encontro de
tenta alcançar, falha.
O objeto vira a rua, sai de vista. Ela continua sendo um recorte. Agora, sem fôlego, rodeado de sombras. O momento aprece infinito.
- Moça!

3.

-Parece teatro.
-Parece?
-Pareceria.
- Não parece, porque?
Calou-se.

4.

É parecido com o silêncio do preto e branco que simplesmente é, não pesa, existe porque algo acontece e a imagem é tanta, existe tanto que palavra alguma penetra. Aí poetiza-se a cena, a si, a ambos.
Mesmo que o som pudesse completar ou preencher o espaço, a necessidade de assimilar cada trecho, cada pormenor de imagem se fez visceral. O silêncio era tudo menos vazio, era cheio de respiração, observação. Não-dito. 
Era um concerto de silêncio, lembrou-se.
Percebeu então a quebra da noção de antes e depois. O durante pareceu se desdobrar em tantos, em talvez tudo.
Pensou seu ambiente outra vez, agora sem desencontro, eis o quarto. Eis o palco.
Sem porão. Sem esporro.


5.

- Você existe.


6.


O chão quase inexistia, três camas, um armário, livros espalhados em pilhas ou sozinhos, livros... tudo existindo em si, a exceção de dois: existindo para si. Viviam o inútil sonho de ser. Pensavam entender. Na verdade, lembravam as falas de um filme em comum. Se olhavam tentando ver dentro, cortar o outro. A luta do filme, o olhar até o sentimento de vertigem, exposição. Eram projetados na recusa do movimento, no silêncio.
Dos detalhes do espaço pouco passou desapercebido, o espelho que os assustou por parecer não-ser, não-refletir. a disposição das camas. os sons que vinham de fora. a clausura. na paisagem do quarto começaram a simular os fatos
ela saía
ele ficava
a ler, a pensar

ela saía
ele continuava

os livros aumentando,
a cidade passava a existir no dentro
nas palavras impressas

ele saía,
as palavras chegaram. 

7.


Aqui não se representa. Mas mesmo que se retraia, exclua-se o mundo. Aqui tem outros, mas preenche-se de diálogo e observação. 

É o começo.

8.

- Nós encaixamos, veja. 

Um levanta, um começa a declamar poesia. 
Outro começa a conduzir uma dança. 
Vão rasurando a paisagem, escrevendo.

9.

Dos dois, lembro da pressa. Ou dos risos nervosos. Dos dois lembro que ficavam se olhando o tempo todo. Mesmo que chovesse tanto lá fora, como nunca chovera antes. Eram estranhos. Eu não podia mensurar se se conheciam a anos ou naquele dia mesmo. Dois estranhos. Diferiam no falar. Olhavam pras coisas como quem enxerga algo. Creio que enxergavam mesmo. Gente que usa óculos grosso. Eles usavam. Falavam de livros e palavras incompletas. Vez ou outra os vi falando em música. 
Quando ela saía, ele se trancava no quarto outra vez e começava a tocar. Eu escutava daqui. Era vibrante, um som que me rasgava por dentro, e eu me questionava como. Ele não tocava como se tocam todos os outros. Não parecia. As cordas pareciam criar sons sobrepostos, parecia uma súplica. Eu pensava que ele pedia socorro. Eram estranhos, os dois. Um dia ela chegou se surpresa, e ele ainda tocava no quarto. Eu vi: ela ficou alguns minutos escutando atrás da porta, rindo. 
Gente estranha não ri tanto. Eles riam. 
aos poucos foram perdendo a pressa, 
aos poucos ela foi aparecendo menos. 
Aos poucos ele ficou mais tempo no quarto, 
entrava com livros e permanecia com o som. 
Eram dois, dois estranhos.

10.
Querido, 

Lembra quando fomos expulsos do Hotel? Lembra como você não me escutou e voltou pra dentro? Era mais fácil se fechar no seu eu, sempre vai ser. Você começou palavras novas aqui. Elas sempre vão ser as minha favoritas. Eu sempre te imaginei olhando o semáforo e pensando no ritmo da cena completa, o som criando o contraste pra imagem ficar sólida. 
Hoje eu caminhei e percebi as sombras no chão e o efeito de cenário outra vez, imaginei uma esquina com uma figura que me escapava. Mas aqui não existem figuras minhas. Aqui só existo eu. Sozinha. Andei mitos outros quilômetros para perceber isso. E para perder um pouco do meu riso.
Daqui eu rememoro as coisas, rememoro os lugares
penso que te separei em dois, e agrupei memórias em cada figura sua. 
Daqui tentei te enviar um recado, acabei por me perder na tentativa de resumir a necessidade de afeto. 
Falta muito. Eu me lembro que te escrevi algumas cartas. Fico lembrando do silêncio e em como isso dói. Eu me sinto egoísta quando escondo as palavras. Mas talvez elas não existam, estejam extintas. Desta vez fui eu a errar, a me esconder em mim. Aqui dentro dá um receio grande, dá angústia de não conseguir sair ou encontrar algo. Tenho medo. 
Começo a organizar as memórias para que talvez eu me lembre de como eu me fiz assim, 
cada coisa acontece de modo se juntar 
fazer parte.
Tento lembrar de como você se portava, 
lembro de você me dizendo para sorrir, mesmo que o mundo não merecesse o meu riso leve. 
Lembro pouco. 

Um abraço, 
Elisa