Junho, um verão frio, fim de tarde








Ana, 

ontem me perdi em Oeiras. 

fui ao centro comercial ver um filme. passei a tarde sozinha. 
o filme era um lançamento popular, de uma história de super-heróis e com atores que muito me apetecem. não me basta ver o Fassbender em Shame, tenho que vê-lo em tudo. 

me alertaram quanto às diferenças de exibição dos filmes aqui: as cadeiras são marcadas e existe um intervalo de 7 minutos no meio do filme. até aí não tinha assimilado a estranheza disso. o máximo foi me confundir quando a moça do balcão me perguntou se preferia a água fresca ou natural. fresca? ah, gelada! me perguntou se eu tinha preferência de assento. tinha: prefiro no meio. ela marcou a quinta fileira. 

cheguei no horário exato do filme. quando entrei, já estavam nos trailers. como eu acharia meu assento? rumei para o meio, sem contar direito qual lugar seria. quase não havia ninguém na sessão. 

havia um grupo de mini-adolescentes, com uns 13 anos, quatro deles, correndo de um lado pro outro, agitados, com alguma coisa nos bolsos, que fazia bastante barulho. uma moça sozinha, com cara de que não era muito próxima do cinema. uma dupla de outras moças que não largavam o braço uma da outra, das que vão ao banheiro juntas, rindo. e um homem que entrou logo depois de mim, se sentou e se preparou para o sono que viria. mais ninguém. não estranhei, era início da tarde, primeira sessão, dia de semana, cidade da terceira idade. ainda assim, algum tipo de excitação interior me preenchia: eu era a estrangeira. eu sou a estrangeira. pela primeira vez, eu sou a estrangeira. ninguém ali teria a minha experiência: eles não teriam espanto. e o cinema se move de espanto, de estranheza. é o extraordinário de ver a imagem em movimento, de escutar o som acontecer no aqui e agora. é o real e o irreal se abraçando, se completando por duas horas. 

começou. meu espanto se dividiu entre o som e a imagem: primeiro o som me chegou, vindo de perspectivas diferentes, com vibrações que eu não havia experimentado numa sala de exbição. mesmo no cinema de rua, que eu visitara ainda esta semana na Cinemateca Portuguesa, nada se igualava àquele som que se espalhava por toda a sala. era uma sala grande e bem distribuída, maior que qualquer cinema que eu havia posto os pés e, agora, preenchida com o audio de uma propaganda de telemóvel que mais parecia um videoclipe do Queen, em que uma moça cantava Dont`s stop me now e arrastava uma multidão, enquanto transitava entre inúmeros cenários de filmes clássicos e icônicos. o som fazia a imersão. o som me chegava de todos os lados. eu estava lá. o espanto. 

a imagem não era a opcão mais avançada e tecnológica do cinema. não era IMAX ou 3D, não era pra ser diferente do conhecido. Mas era. a diferença de nitidez era absurda, a qualidade das imagens me lembrava o rasgado na tela do cinema que eu mais frequentava. estampado. 

quando o filme atingia o ápice da linearidade, quando estava propriamente imersa... intervalo. foi brusco. cortou a ação, cortou o movimento. e o silêncio me aturdiu. fiquei sem compreender ao certo o que acontecia enquanto os garotos saíam fazendo barulho, as duas moças desciam as escadas rindo de braços dados e o moço virava a cabeça para o lado sonolento. olhei a minha volta, vendo a moça sozinha lá atrás apática, o moço dormindo. sete minutos de constrangimento. sete minutos pra lidar com o silêncio. 

o filme voltou, junto dos meninos correndo. terminado, os créditos aparecem e as pessoas começam a sair. menos eu e a moça lá atrás. escutei um dos meninos falando "já pode ir moça, a melhor parte já passou" baixinho. não saí. estranhei as pessoas saindo. todos os filmes da Marvel têm uma cena depois dos créditos. eles não sabem disso? todos saíram, a moça atrás de mim também. uma senhora apareceu ao canto, para limpar a sala. me viu, olhou para a tela, assisntindo aos créditos junto a mim. esperei. fiquei imaginando quão injutificável seria se não existisse cena alguma, e eu ficasse lá, esperando. as pessoas não têm hábito de ver créditos de filmes. a cena veio, 10 seguntos predizendo o próximo filme. fiquei aliviada. saí. 

confusa, tentei sair do shopping, rezando pra que ninguém olhasse para mim. quando eu chegara tive a impressão que olhavam porque eu estava com um lenço no cabelo. agora, sem lenço, senti o alívio de ser invisível. achei a saída para o ponto de táxis, atravessei a rua penosamente, sem faixa para pedestres ou calçamento. cheguei ao Parque dos Poetas. 

a partir daqui não consigo descrever o deleite de ver cada mini-jardim para cada poeta que eu amo. de olhar para Florbela pegando sol, ou Sá Carneiro numa paisagem tão suave, tão leve... de procurar avidamento Pessoa, ou andar entre pedras e folhas. de escolher ao lado de quem eu gostaria de sentar e abrir um livro. ver caminhos escondidos e grandes rampas, abertas. ver um pequeno lago, poemas cravados no chão, passarelas que mais lembravam instalações parecidas com a Ópera de Arame. tudo tão novo, mas tão cheio de afeto de coisas conhecidas. eram meus poetas, eram minhas recordações de outros lugares e palavras. e tanto sol. 
e de tentar ler, lembrando e suspirando de saudade. começar a detestar a falta de entusiasmo com o presente. 

calculei um horário em que eu poderia me perder e ainda continuar dia. saí por outro portão, diferente do que eu entrara - porque reconheci em outro um caminho que fazia muitas vezes de carro. caminhei. 

foi aí que me perdi. tentei me convencer de que caminhava para o rumo certo. em algum momento percebi que me aproximara muito do mar. e me vi rodeada de prédios. comecei a seguir as placas, sem saber ao certo para onde ir. procurava o Jardim do Marquês ou o lugar onde se pegava os comboios. caminhei. saí de avenidas, olhei cafés, segui a placa da biblioteca municipal, passei por ela sem vê-la. comecei a me descobrir perdida. pensei em rumar de volta ao Parque dos Poetas. continuava perdida. Dei voltas e comecei a sentir calor, mesmo com o vento forte e gelado. fiquei um pouco aturdida. ainda assim, não sentia o mínimo de desespero ou medo. olhava os prédios a minha volta e me sentia deslocada e contemplativa. dentro dos cafés não me imaginava parte de nada, não me via sentada e tendo uma conversa com ninguém, não me sentia acolhida ou aconchegada. não me sentia parte. não me sentia dentro. me sentia a olhar. o olhar de fora. e tudo era tão bonito e simples. 
rumei para um lugar que pensei ser uma padaria. eu tinha fome e nenhum café me parecia convidativo para me integrar por alguns minutos. tudo distante, tudo a parte. por fim, não era uma padaria, era um supermercado. estanquei. o caminho parava em alguns prédios, postos a frente, restanto apenas uma curva a direita, subindo, voltando para o rumo que eu vinha. segui a curva. na calçada, uma escada e uma senhora com duas sacolas aparentemente pesadas na mão. perguntei-lhe se precisava de ajuda, ela me olhou rindo e dizendo que não precisava, subi ao seu lado, olhei-a e tomei coragem para admitir que estava um pouco perdida e que provavelmente estava bem distante do Jardim do Marquês, mas se ela não poderia me indicar uma direção a seguir. ela pediu um tempo para se localizar, caminhou um pouquinho até a esquina, para poder ver onde as ruas iriam parar, e exclamou animada que não estávamos muito longe, estávamos era bem perto. apontou para o fim da rua, para uma casa vermelha onde se podia ver algumas bifucações, lembrei da casa, tinha vindo por era mais cedo. disse para que virasse a direita e seguisse rumo a câmara da cidade e me perguntou com voz de avó preocupada se não estava muito tarde para visitar o jardim, disse-lhe que não pretendia ir visitar, era somente meu ponto de referência para voltar para casa. ela riu, se despediu, agradeci. adeus, senhora, adeus. 

agora tinha rumo. fiquei lembrando do telefone que tinha anotado num bloquinho, caso me perdesse. a única coisa que poderia me salvar caso eu me perdesse muito. me perdi pouco. rumei para a câmara, depois ao centro histórico, passei por ruas que me tiraram as certezas, vi planos tão oníricos que enfim me senti viajando. enfim me senti no lugar em que sempre quis ir. não planos turísticos, eu não quero turismo. quero ver o típico, o cotidiano. os cheiros e desvãos das ruelas me cativaram. as surprezas de ruelas que pareciam não dar em lugar nenhum, uma senhora a porta de casa, escondida, as ruínas, as pessoas conversando em lados opostos da rua, um fusca verde num beco de azuleijos nas paredes, varandas atulhadas de flores, uma lambreta numa travessa íngreme ao lado de uma janelinha azul. 

logo achei meu rumo. logo passei defronte ao jardim, vi as luzes das festas de Oeiras, vi uma casa abandonada, um senhor me encarando, mais placas. comecei a perceber o quanto sentia falta de caminhar, e quão prazeroso era poder escutar os sons da rua, me movendo. o quanto era revigorante se perder. não ter certeza. a partir disso, achar um rumo. 

cheguei em casa, nova oeiras, muitas árvores, muito verde, muito silêncio, torre F. 

F.