carta silêncio de noite inquieta, julho quase agosto, 23:05




kaio,


hoje parei e perscrutei os sons da casa. meu braço quase dormente me lembrava que isto estava além da possibilidade de ser. ainda assim, escutava
passos na escada, descendo ao andar de baixo; água escorrendo, água caindo sob uma superfície metálica, o som do fogo sendo acesso,
cortes bruscos, barulhentos, algo sendo socado na mesma superfície que se corta. mais cortes, água, cortes silenciosos,                        silêncio da ação que acontece e não me chega.
isto era a minha mãe na cozinha preparando um chá, como imagino.
em qualquer outro cômodo do quarto meu irmão permanece num silêncio que jamais atingirei, um silêncio que tento compreender ou reter sendo da forma barulhenta que sou. ele não se move,
ele só permanece.

existe algo de inatingível na calmaria,
o meu irmão é calmo, quieto. ele sempre está em algum lugar da casa, num canto, estirado numa preguiça ímpar, quando ele fala, fala baixo. ele chega e se aconchega num canto. ele pode permanecer um dia numa quietude que assombra. enquanto isso eu sempre tenho música tocando pra talvez aplacar uma solidão, como diz o poema.
tudo que você diz, diz de forma calma. quando com sono é ainda mais bonito,
me desculpe a voz de sono vou só fechar os olhos e dormir, estou cansado
            e está
mas me arranca um sorriso o seu cansaço calmo
ou sua efusão também calma
acho que é o timbre de voz, é o tom sereno, o tom de quem olha pro mundo quieto e percebe que tudo corre enquanto ajeita o casaquinho (quando, claro, é inverno. dias quentes são nosso cotidiano, aqui e aí).

na verdade, com desculpa e falar de silêncio e quietude eu te escrevo
para nada
para lembrar que é possível escrever a um outro
que é possível dizer nada e talvez transportar um afeto na distância que se instaura
distância que é só física
sua voz me chega quase toda noite numa preguiça dizendo boa noite

então
escrevo.
boa noite, querido
me escreva
é possível,
sempre existe a possibilidade às coisas.

um afago,
f.