Arrasta-se a Inconsciência



"Qual fraca luz que alimenta
Tocha que ao vento estraga,
Se com um sopro de acende,
Com outro sopro se apaga." 
(Incerteza, Leonor de Távora)




       Girava. Girava num redemoinho de versos. As palavras saíam descompassas, exultantes, vivas. Vivas. No emaranhado de correlações a palavra encontrou correspondências. Viva, de onde vem a vida das palavras? Pensou, essa vida provinha dele, suas palavras tinham alma, não eram apenas palavras, eram expressão. Expressavam sua vida, e todas as palavras viviam para tal. Ou não? As palavras continuavam a jorrar, voltou a girar. 




       Ele no centro da ação, girando. O mundo passava ao seu redor como se o que importasse mesmo não fosse ele no centro, mas o que saía dele. A representação caía por terra, a essência tinha finalmente a atenção. O abstrato enfim pôde ter voz. A voz era dele. Ele, aquele que dava a vida as palavras, que trazia à luz a abstração de todas elas, de todos os versos.

       E quanto mais tomava consciência disso, mas sua respiração acentuava o ritmo ardente de todo aquele turbilhão de sons. Sinuosamente, sibilava as mais fervorosas sílabas, os mais dantescos significados. Ora bradava, e ao bradar inspirava o que para si parecia movê-lo: mais ainda que puro ar, era o motivo. O motivo pelo qual cantava, e bradava, e balbuciava.


       Gritou, gritou freneticamente Desvario! Desatino! Descompasso! Delírio! Desalento! Desamores! E quanto mais dês e dês se pronunciavam, o motivo o preenchia, as palavras o cegavam, mais palavras! Mais palavras!


       Shhh! Um intruso. O giro cessou, o compasso rítmico também, as palavras fugiram, foram alojar-se num canto a parte, esperando...


       A Consciência vinha chegando, uma vez no recinto, o estupor das palavras veio à baixo. É quase na inconsciência que elas criam mil significâncias, mil ritmos e sensibilidades, elas brincam quando a Consciência dá trégua, na brincadeira é que podem criar vida, a vida que é tão sufocada pelo dever da prática consciência. Tudo agora parecia teatro. Não seria esse o motivo de dizerem que o poeta é um louco?

       Na calmaria formada pela amarra instituída pela ordem, começou a pensar, junto com sua consciência: que belas palavras temos aqui, fugidias, dramáticas... escreva-as. Neste ponto, forçou-se a abrir os olhos. Feito. Não poderia se dar ao luxo de perder todas as tramas que lhe vieram a cabeça, levantou-se na penumbra. Tateou, como todos que acordam na penumbra. Parou: como tudo perde a singularidade quando estamos acordados, será que agora as palavras eram tão vivas? Afastou o pensamento. Achou papel, caneta, pôs-se a escrever tudo o que brincara em sua cabeça no quase-sonho. As palavras fluíram, quase que automáticas, mas cheias de reticências, muitas fugiram, o que poderia controlar o espírito livre das palavras? Impossível! Palavras controladas são forma, já provamos que forma tão somente não tem o motivo de palavras livres. Terminou seu rascunho, deixou o papel e a caneta ao lado da cama. Deitou-se.

       A consciência demorou a ir-se embora, precisava se certificar da boa escolha tomada. As palavras poderiam fugir, o melhor era eternizá-las enquanto podia, cansara-se das boas idéias esquecidas pela manhã. Saiu.

       À medida que a consciência se esgueirava noite a fora, as palavras tomavam ritmo, voltavam ao foco, tomavam ritmo, mesmo que tímidas, então... pensou num desfecho, o desfecho da valsa que se instaurara... Mais palavras! Mais palavras!

       Fez que abriria os olhos, não conseguiu, o estupor do sonho já se insinuara na pesada força que mantinha seus olhos serrados. Nem se conseguisse abrir os olhos, fosse até o criado (ou ao lado da cama? Onde? Não recordava) e de lá tirasse papel, caneta e prostra-se a escrever o jato de palavras que inundou sua mente, conseguiria fazê-las vivas como agora.

       Essas palavras tão despretensiosas e leves, tão saudosas e pesadas, tão líricas e destoantes, não são recordações, são momentos, são movimento, são sentido e sensibilidade. São a alma do Lutador, são o ritmo acelerado precedente à lentidão do sonho. Sonho.

       A cena se congelou, o ambiente cessou de girar. Brincou um sorriso torto, como quem brinca com palavras. E o sorriso era mais, era a absoluta certeza de que palavras e idéias inefáveis são um espetáculo à chegada do sono, e são grandiosas por tal, brincou com palavras, e com o sorriso: não se lembraria do desfecho, e nem das palavras, na manhã seguinte.