A Solitude dos Que Esperam


Pergunto: porquê corro? para quê corro? para quem corro? Não tenho tempo.
A velocidade é um estupor convidativo. Talvez a necessidade de inconsciência tenha suplantado tantas outras que vivemos estupefatos pela pressa.
Talvez corramos porque não desejamos mais ser lembrados. A memória pesa, começamos a não ter tempo, e ansiar pelo fim; Corro sem motivo aparente, (talvez pelo esquecimento).
É aqui que o Acaso aparece. Paro.
Esbarro numa estória, das cenas jogadas, espalhadas, em todo lugar. Cada vazio contém uma estória, mesmo que boba ou irrisória, mesmo que cotidiana.
 “Porque a pressa?”
Injustificada como é, acaba por ruir a uma simples indagação. No final de tarde, dia comum, Amélia está me olhando, lá de seu portão entreaberto. Fazendo gestos pra que eu me aproxime, naquele instante em que eu iria entrar (correndo) em casa, trancar-me.
Amélia tem olhos que riem da nossa pressa. Oitenta e cinco anos, redondinha, óculos redondos (que eu sempre quis ter), e sempre um “esqueceu de mim, foi?” na ponta da língua.
Acompanhei-a. No quintal da casa de Amélia tem uma cadeira de balanço, sempre que posso fico balançando. Mas o momento não era dela, era de cozinha e pão recém saído do forno. Era fim de tarde, e cheirava a café (o cheiro que toda tarde tem).
A cozinha é o lugar mais comum para encontrarmos a ansiada estória. Espero que já tenha ficado claro que comum jamais deve ser encorajado a ser visto como algo sem grandiosidade. Não é nada mais que aquilo que se encontra o aconchego, risinhos dentro da consciência, externa expressão de conforto. É na cozinha, envolta por um tom amarelado, por vezes avermelhado, que tudo se desenrola.
A cor é importante, e durante a narração é importante que percebamos as variações de cor. A cor é artifício, é poesia. Quem vê a poética do mundo vê suas cores, suas variações. (Precisamos nos atentar pra poesia do cotidiano, o extraordinário, essência, é em preto e branco). Quando enxergamos verdadeiramente os pormenores de uma situação tudo assume uma cor amarelada. Na cozinha, a beleza da fumaça do café fresco, quente, ameno, saindo da xícara em contraposição ao tom amarelado da situação. A beleza salta aos olhos.
A narração começa. Amélia está sentada, nas mãos uma xícara de café, o sorriso ainda sutil, mas estampado pra que eu veja. Está contra uma parede de um tom azulado, isso é bonito, tons azulados sempre ficam belos em situações amareladas.
“No tempo em que eu era mais nova era tão diferente de hoje. Naquele tempo, nossos pais ainda escolhiam com quem nos casaríamos”.
Uma estória de amor, sem polvilho, só remorsos sinceros e singelos. Contou-me que houvera um grande amor, contou-me que este amor fora o único. Amélia nunca se casara.
“Meu pai até gostava dele, mas o grande problema foi minha mãe. Não queria, não queria de jeito algum. E então me proibiu de vê-lo. Eu escutava pela parede eles discutindo, ela não permitia de forma alguma, e então, meu pai cansou-se de tentar convencê-la.”
Estava decretado, o amor de Amélia era impossível. Neste ponto, como de costume, a proposta de fuga veio à tona. Ela sempre vem. Ansiamos por uma liberdade plena, e mesmo assim sempre criamos subterfúgios e desculpas no caminho, é dialético: buscar pelo absoluto quantificando. Ela propôs fugir, ele declinou: não poderia vê-la desonrada. É o caminho e a história de tantos e tantos enamorados que, mesmo comum, provoca aquela mesma sensação de uma história trágica que quando contada várias vezes: respiração presa, aperto no coração. 
                        “Ele também nunca se casou.”
Amélia, mesmo não se casando teve filhos. Adotou-os, tirou alguns de situações precárias, e os criou com maestria. Todo o amor que seria destinado em situações felizes a seu amado, foi convertido a amor materno. Os filhos cresceram, os netos estão crescendo, a casa que antes era atulhada de sons e risos e histórias na cozinha agora se enche com o vazio do silêncio.  Amélia tem a mim e a tantos outros que encontra, quando o tempo veloz coincide com uma passada no portão, um encontro certeiro, ela trás calmaria ao cotidiano veloz, aturdido.
Meus devaneios se interrompem, não pelo cheiro de mais café, mas pela continuidade da história.
“Tive um sonho. Sonhei com ele, anos mais tarde. No sonho, eu dava aulas na cidadezinha em que fui criada. Quando ia embora pra casa, vi que ele também estava lá dando aulas. Fomos embora juntos. Seguimos pelo caminho estreito e calmo que levava a minha casa, a dele ficava um pouco depois. Ele vinha segurando meu braço. Conversamos como antes, como conversávamos naqueles tempos. E então ele me deixou em casa, prometeu que voltaria. Eu esperaria por ele, sempre esperei. Me abraçou e se foi.”
Ela agora se abraçou, lembrando-se do sonho. Segurou no próprio braço, indicando como ele vinha segurando o seu braço.
“Acordei e continuei a sentir ele a segurar meu braço. Continuei a sentir esse aperto por uma semana. E naquela mesma noite que sonhei, ele me deixara definitivamente, ele havia partido, não voltara. Naquela noite ele faleceu.”

Suspiro.