Imaginário Cotidiano (ou Porque não falamos sobre Bacon)



- Falemos de outra coisa, vamos falar de... de...

Parar é um fardo difícil de ser levantado. Falavam de pessoas, todos sempre falam de pessoas, é a regra humana desde sempre, em qualquer época ou lugar. Pessoas falam de outras pessoas.  Por mais natural que seja, os seres de agora temem que seja de conhecimento geral que andaram falando de coisas como... pessoas. Quão lamentável seria se descobrissem que pratica algo tão baixo. Em conversas deve-se sempre falar de assuntos dignos de uma pessoa única, interessante: música, cinema... política! Claro, na teoria e subconsciente. Na prática, tudo se resume a impressões triviais sobre um álbum ou outro, uma coletânea, um seriado, um filme, aquele ou este personagem que você gosta ou não. É possível até mesmo fazer um esquema de conversas desse tipo, só preencher as lacunas com o filme que no momento te destacaria no meio dos outros na conversa: aquele que só você conheça, e sem a palavra ‘amor’ no nome, por favor.

Mas voltemos à conversa em questão, não queriam mais falar sobre pessoas, são sempre as mesmas e este assunto, ah, este nunca acaba.  E enfim, a idéia aparece:

- Vamos falar de... Literatura! Isso, literatura!

O assunto induzido. Segue-se então uma série de lacunas, “Já leu Balzac?”, “Oh, não, não. Mas conheço de nome.”, “Hmmm”, “Li recentemente um outro... Sim, Saramago, ando lendo Saramago”, “Interessante, tenho um livro dele... muito bom...”, “Ah, então você leu!Bom, não é mesmo? Estou gostando... “, “Ah, não li, pra falar a verdade. Eu tenho.”.

A isso segue-se inúmeros “Já leu Baudelaire?”, “Andei lendo...”, e as lacunas vão se expandindo.  É fácil, não rende. Os comentários são bem parecidos sempre. Então, como qualquer conversa a margem que se preze, o beat aparece, Kerouac.

De Kerouac pulam pra cinema, afinal, logo um filme será lançado e... quebra de raciocínio.

“Vou ler Fabulário Geral do Delírio Cotidiano... conhecem?”

A literatura volta à cena, agonizante.

“Ah, eu tenho o livro”. Alguém sempre tem o livro, meu caro.

“Um amigo meu, Fulano, vai me emprestar...”

“Quem?”

“Ninguém, você não conhece...”

E está de volta... Em determinado momento até John Malkovich pode manifestar-se como um objeto de conversa.

“Não, quem é? Eu tenho este livro, como falei, emprestei pra Alguém, sabe?”

“Não, não sei, não conheço ninguém com esse nome”

“Conhece sim, Alguém, ele está sempre com você, meu primo, sabe?”

“Não, não conheço nenhum primo seu...”

“Conhece sim!”, dirige-se a outro, que estava numa conversa ferrenha sobre barracas e acampamento, falar sobre pessoas é sempre mais importante: “Diga a ele, ele não se lembra de Alguém, diz não conhecer ninguém com este nome.”

“Conhece, veja, Alguém, que está sempre conosco... “

“Ah, claro! Alguém! Não sabia que ele é seu primo!”

“Todos sabem, mas então, imaginei que fosse ele que iria te emprestar o livro, ele não me devolveu há tempos...”

“Não,  não é ele, é um outro amigo meu, você não o conhece.”

“Vai que conheço, diga-me, quem é?”

“Não, não, você não o conhece”

Veja, está aí mais uma  sobre pessoas: elas sempre se conhecem, ao menos pensam que sim. Pessoas se relacionam, e a simples contestação de uma pessoa desconhecida, e que por fato não é alguém que seja de conhecimento de um dos envolvidos na conversa, interesse despertado. Porque não seria conhecida? Essas pessoas existem, claro, são aqueles amigos só seus, claro, esses amigos se relacionam, mas por alguma razão, eles são só seus. Pode-se dizer com veracidade “Não, não, você não o conhece”.

“Diga, quem é?”

“Fulano, como eu disse, você não conhece, ninguém conhece, ele faz Um Curso...”

“Ele é relativamente pequeno, com barba, óculos e... anti-social?” 

“Sim! Ele mesmo!”

“Então, conheço.”

A conversa com absoluta certeza não teria voltado tão prematuramente a este ponto, caso tivesse sido iniciada com “Vocês tem que escutar essa receita pra se fazer com bacon que eu encontrei...”.

                                                                                                                      Junho 2012, L.
        Antoniano Apollo