00:48, dia chuvoso, dezembro

Tereza,

hoje é o aniversário de uma epifania, talvez também o completar de anos de uma desatenção. os traços mudam imperceptíveis, mas deixam rastros que posteriormente metamorfoseiam-se em lembrete. está passando. está mudando. olhei distraidamente para trás, percebi coisas deixadas para trás. não fui eu que quis, fui deixando cair no caminho, desatenta. agora me pergunto se devo voltar pelo mesmo caminho e ir recolhendo meus pedaços. no fundo, sei que não é possível, o movimento de ir caminhando a frente é assim: mais pedaços vão se juntando aos seus, mais objetos, mais dias e então você se vê cheia, mas prosseguindo. alguns pedaços vão caindo, já que têm de dar espaço a outros. sobre alguns, abri mão deles, voluntariamente, foi necessário. sobre outros, eles se foram e eu não queria. escorregaram e só agora que olho para trás os vejo caídos no caminho. acho que deve vir outro alguém pelo caminho e recolhê-los, talvez me devolva lá na frente.

quando lhe digo de pedaços, quero que imagine toda a sorte de vivências, imagine o seu olhar. imagine quantas imagens você não guardou para si, e se fez com elas. imagine que você esqueceu-se delas, mas eles continuaram ali, em seus braços. até que caíram. as imagens mudaram tanto, nosso olhar parece sempre novo. mas claro, isso é uma mentira.

ando mentindo-lhe. na verdade o que procurei ao olhar para trás foram as constantes que me deixaram a atenção. não lhes vi, me esqueci. mas agora procuro-as. me dei conta de que se conseguisse entender a minha constância e descobrir seus contornos, eu teria ali um alento. fui em busca de reais instáveis e invisíveis, que se avultam quando olha-se pra trás, numa anotação feita 5 anos antes, numa fotografia de 2 anos atrás, um recorte, nos livros que se leu. parei defronte a minha estante e examinei meus livros, recordei-me de quando cada um começou a fazer parte, cada voz veio cheia de saudade.

sou um tumulto, e escrevo. demorei um pouco, pensando sobre o som de sua carta, de suas palavras melodiosas. quem te responde é outra voz, que não minha, quem te responde é Llansol que me acalentou numa noite, noutra noite. ela te fala sobre o som, sobre ele se pretender a traduzir o que tu sentes. " vi que as manifestações sonoras são combustões luminosas./ os sons acabam porque se queimam e, ao queimarem-se, tornam a matéria evanescente./ os sons transformam-se em fumo; este, há-se ser nuvem."

"Tudo é som."

parece-me a canção que se elevou, que acompanhou Sorôco, que te acompanha. a melodia traduz, Tereza. "tudo é ritmo no cérebro do poeta".

n'outro momento te escrevo outro som,
Elisa